O que está implicado na leitura?

Aprender a ler pode parecer um processo relativamente fácil para todas as crianças, uma vez que, de forma global, a maioria das crianças aprende a ler relativamente rápido, sem grande esforço e através de diferentes metodologias, no entanto, este processo não acontece deste modo para todas as crianças. Para podermos entender e ajudar mais e melhor as crianças para a qual a leitura é um desafio, torna-se necessário o entendimento dos processos envolvidos no momento da leitura. 


Ao longo das últimas décadas têm sido inúmeros os trabalhos que procuram propor, provar, explorar e descrever modelos explicativos da leitura, alguns baseado-se num processamento "botom-up"/ascendentes, outros "top-down"/descendentes e outros em modelos mais interativos. 

Como exemplo, o SVR/VSL (Simple View of Reading/Visão Simplificada da Leitura) - modelo de natureza “botom-up”, propõe que a leitura "corresponde ao produto de dois componentes independentes: a descodificação que consiste na capacidade de ler palavras isoladas de forma rápida, precisa e silenciosa”, obtida através da relação fonema-grafema e a compreensão auditiva-linguística (Descodificação x Compreensão = Leitura)".


Tendo em conta o tipo de perfis encontrados nas dificuldades leitoras, surge a amplificação deste modelo (Nation, 2019) - modelo de natureza interativa - considerando diferentes componentes da linguagem em inter-relação, não como únicos envolvidos, mas como fatores essenciais tanto na decodificação quanto na compreensão linguística. Assim, a leitura envolve  diferentes componentes:

  • Reconhecimento da palavra/descodificação- que parece envolver mecanismos interativos (Modelo da dupla via- via fonológica e via lexical). Envolve o processamento ortográfico e visual das letras e transformação das mesmas em representações fonológicas. Para conseguir este conhecimento é necessário dominar o princípio alfabético (se a língua é alfabética). Todo o processamento fonológico (https://www.taniareis.com/pt/apontamentos/o-processamento-fonologico), incluindo a consciência fonológica (https://www.taniareis.com/pt/apontamentos/consciencia-fonologica---de-que-estamos-a-falar), será recrutado neste processo, muito para além da relação fonema-grafema. Será importante para a junção de letras, sons, dos sons em sílabas e das sílabas em palavras. À medida que as crianças vão treinando, vão ficando com a forma da palavra em memória, o que permitirá o reconhecimento automático da palavras. (num próximo apontamento irei explorar com mais detalhe estes aspetos).
  • Vocabulário - Conhecimento das palavras - permite aceder à forma fonética e fonológica da palavra bem como ao seu significado. Permite monitorizar (possibilitado por outras competências cognitivas) se a forma encontrada faz sentido. Se a palavra existe. 
  • Fluência de leitura - a fluência de leitura é, frequentemente relacionada com a descodificação ou ao reconhecimento de palavras, com a velocidade, precisão e prosódia, no entanto, a fluência leitora relaciona-se também com a compreensão da linguagem. Significa que um leitor conseguirá ser mais fluente se for construindo significado e ativando possibilidades de palavras que poderão ser lidas no contexto. Assim, a fluência envolve não apenas a capacidade de reconhecimento de palavras, mas também o conhecimento semântico e sintático bem como de pistas textuais tais como sinais de pontuação. Abordagens eficazes para desenvolver a fluência leitora, geralmente, promovem também a compreensão da linguagem.
  • Consciência Morfológica - A consciência morfológica exerce uma influência direta na capacidade de leitura, podendo estar implicada em dificuldades de leitura como na Dislexia. O processamento morfológico, encontra-se relacionado com reconhecimento de palavras. Vários trabalhos demonstram o efeito da análise morfológica na leitura, ou seja, os leitores acedem aos radicais e a outras componentes morfológicas, de forma a obter mais rapidamente a palavra e o seu significado, ou seja, à compreensão. Por exemplo, a consciência morfológica permite ao leitor reconhecer que as palavras escritas <magia> e <mágico> estão semanticamente relacionadas, apesar das suas diferenças.

Para além destes, que incidem um pouco mais na palavra, se aprofundarmos a compreensão de frases e textos, descobrimos, não só a fonologia, semântica e morfologia, como também os restantes domínios linguísticos como fatores fundamentais no processo de leitura (recomenda-se a leitura do apontamento sobre este assunto: https://www.taniareis.com/pt/apontamentos/le-le-le-mas-nao-compreende-



O que está implicado na leitura?

Tendo em conta os mecanismos de leitura descritos, será necessário que todos eles possam funcionar adequadamente de forma isolada e, simultaneamente em interação.

E, tão importante também, para além da linguagem…

  • O papel ativo do leitor - As próprias crianças desempenham um papel essencial no processo de aprendizagem. Para além de adquirir o conhecimento necessário para a  leitura de palavras, os leitores fluentes  aprendem e coordenam ativamente os vários processos e elementos de texto necessários para assegurar uma leitura bem-sucedida. Implementam estratégias para garantir que os processos de leitura ocorrem sem problemas, mantêm a motivação e envolvem-se ativamente com o texto.
  • Funções executivas - As funções executivas são processos neuro-cognitivos auto-regulatórios, recrutados em novas aprendizagens, que incluem, pelo menos – flexibilidade cognitiva, memória de trabalho, controle inibitório, atenção e planeamento. 
  • Motivação e Envolvimento - Como aprender uma nova competência e dirigir a atenção para ela se não entendemos para que serve, se as atividades não nos motivam. Se eu não quiser muito, como vou investir tempo e atenção numa tarefa que pode ser tão complexa e difícil? A falta de motivação reflete-se diretamente no controlo dos processos leitores e na auto-regulação leitora, pelo que é fundamentar considerá-la no processo.

A fórmula Descodificação x Compreensão = Leitura passaria a qualquer coisa semelhante a:

Descodificação (fonologia) + vocabulário (semântica) + fluência leitora (vários domínios linguísticos envolvidos) + consciência morfológica + papel do leitor + funções executivas + motivação = Leitura - Num processo que não é na verdade um somatório mas antes interativo.


Assim, tendo em conta os mecanismos de leitura descritos, é importante relembrar que, por um lado, será necessário que todos eles possam funcionar de forma isolada, no entanto, todos devem ser ativados durante o processo de leitura em simultâneo. 

Deixo algumas perguntas que podem ser úteis na interpretação de resultados e/ou na intervenção com uma criança que apresenta dificuldades nestes processo.

  • A criança apresenta dificuldades linguísticas?
    • Se sim, quais os domínios que estão a influenciar o processo? O domínio fonológico, semântico, morfológico, sintático, pragmático? - Em cada um deles, existem especificidades a ter em conta (por exemplo: influência de unidades ou vias de processamento específicas).
    • A intervenção está a englobar todos os domínios implicados na competências que se pretende que seja aprendida?
  • A criança não apresenta dificuldades específicas e isoladas dos diferentes domínios linguísticos  (pelo menos não surge nas provas de avaliação)? - pode acontecer que a ativação destes componentes, em inter-relação para a aprendizagem não esteja a ser conseguida.
  • A criança está motivada para esta nova aprendizagem? As atividades desenvolvidas vão ao encontro do seu estilo de aprendizagem? As atividades menos apreciadas são reforçadas por outros aspetos que a podem motivar (relação, objetivo, desafio, brincadeira, etc.)?
  • A criança consegue manter atenção e controlo no processo de aprendizagem? A criança sabe a que processos deve prestar atenção? Existe um treino específico e consciente sobre estes processos?


Espero que este pequeno "apontamento" te seja útil!


(Adams (1990); Cromley & Azevedo (2007); Gough & Tunmer (1986); Cervetti et al.; Nation (2019); Goodwin and Ahn (2013); Stevens, Walker, and Vaughn (2017); Ehri (2014); Kuhn et al. (2006); Stevens, Walker e Vaughn (2017); Gottardo et al. (2018); Kirby et al. (2012); Zhang & Ke (2020); Duke, Cartwright (2021); Luis-Castro, Sucena, (2008); Moura (2019); Heyer & Kornishova (2018); Elbro e Arnbak, (1996); Quémart e Casalis (2015))