vela ou fela? - troca de letras na escrita
Durante o processo de aprendizagem da leitura e da escrita é possível observarmos a presença de diferentes erros nas produções escritas das crianças.
Ao analisar os tipos de erros que ocorrem com maior frequência, verifica-se que dominar os aspetos ortográficos da língua parece constituir um desafio para a maioria das crianças, observando-se um maior número erros de natureza ortográfica - dificuldades em decidir se a palavra tem <ç> ou <ss>, se deve utilizar <ce> ou <se>, entre outroas. Dominar a ortografia implica conhecer as diversas possibilidades de escrita e desenvolver recursos de memória para dominar a forma convencional de escrever as palavras.
Outro tipo de erros que podemos encontrar com frequência em crianças de primeiro ciclo (sobre tipos de erro sugerimos a leitura do apontamento https://www.taniareis.com/pt/apontamentos/os-erros-e-a-escrita e https://www.taniareis.com/pt/apontamentos/ainda-sobre-os-erros-na-escrita) são aqueles que surgem por decisões baseadas num mecanismo de transcrição da fala, ou seja, a criança apoia-se na oralidade - que possibilita reflexões que a escrita não deverá transportar - para a codificação na escrita. Um estudo com crianças portuguesas que frequentam uma turma de 3º ano não encontra esta mesma ocorrência, observando a presença de maior frequência para erros fonológicos segmentais. Outro estudo realizado com crianças portuguesas do 1º ano de escolaridade verifica esse tipo de ocorrência quando analisadas as produções escritas com relações ortográficas transparentes. Face aos dados descritos, torna-se essencial prosseguir com o estudo da escrita durante o processo de aprendizagem.
Quando os erros na escrita envolvem o processamento de informações fonológicas segmentais surgem manifestações de trocas de letras na escrita - tal como referido anteriormente. Algumas crianças apresentam dificuldades em processar a unidade segmental verificando-se dificuldades no estabelecimento das relações fonema-grafema e, neste caso, podem ser observadas diversas trocas de letras, muitas vezes assistemáticas e/ou inconsistentes.
No entanto, algumas crianças revelam dificuldades em propriedades fonológicas específicas (os traços distintivos) tornando essas trocas de letras mais consistentes, embora possam ocorrer de forma assistemática - a criança ora escreve bem, ora escreve de forma incorreta. Os erros relacionados com as propriedades segmentais são aqueles que frequentemente podem envolver dificuldades com os traços de:
- Vozeamento - manifestado por trocas como <v>/<f>; <j>/<x>; <z>/<s>; <b>/<d>; <d>/<t>; <g>/<c>;
- Nasalidade - manifestado por trocas como <b>/<m>; <n>/<d>; <nh>/<lh>; <an>/<a>;
- Ponto - manifestado por trocas como <p>/<t>; <m>/<n>; <f>/<s>; <x>/<s>; <j>/<z>; <l>/<lh>;
- Combinação de traços (classes): manifestado por trocas como <r>/<l>; <f>/<p>; <d>/<l>;
Por que razão as crianças têm dúvidas sobre as propriedades que fazem diferir os fonemas (os traços distintivos)
Mas, não queremos apenas identificar um erro e a sua natureza - o que por si só já é um passo importante no processo terapêutico - queremos entender e explorar o que poderá explicar uma troca como aquela que acontece entre as letras <f> e <v>? Este entendimento é fundamental para o planeamento da intervenção terapêutica.
Estas trocas, que envolvem propriedades fonológicas, quando ocorrem de uma forma consistente, não são justificadas como uma dificuldade inerente à aprendizagem em função da complexidade das regras da escrita, então, o que poderá explicar as dificuldades inerentes a estes erros?
Nestes casos, verifica-se muitas vezes que, apesar de as crianças serem capazes de identificar a presença do fonema, não conseguem diferenciar, com precisão, se o mesmo é vozeado ou não vozeado - manifestado na fala pela vibração ou não das pregas vocais. Sabem que existem duas letras que representam os segmentos mas acabam por ter dúvidas sobre qual a letra a utilizar. Uma parte das escolhas da letra podem estar a ser realizadas ao acaso, daí a natureza da assistematicidade destes erros.
Persiste a questão que gostávamos de explorar neste apontamento: por que razão as crianças têm dúvidas sobre as propriedades que fazem diferir os fonemas (os traços distintivos) e, neste caso, especificamente o vozeamento?
Uma das razões poderia ser o facto de as crianças escreverem muitas vezes em silêncio retirando a possibilidade de utilizar as pistas acústico-articulatórias. Na nossa prática percebemos que estas pistas (pistas fonéticas) são muito utilizadas e úteis em fases iniciais do processo de aprendizagem mas não consideramos aconselhado que persistam no tempo (pelo menos como predominantes ou únicas) já que podem dificultar o treino do acesso à informação fonológica e, até, ao acesso da informação ortográfica (memória ortográfica). No entanto, nem todas as crianças que escrevem em silêncio fazem esta troca pelo não parece ser um a grande justificação para este tipo de erros, ou então, são crianças com um conhecimento fonológico já estabilizado!
Por outro lado, se uma criança recorre a pistas fonético-acústicas da sua fala para a escolha da letra, e se esta propriedade também não estiver presente e estável nas representações fonologias que servem às produções orais (fala), poderemos ter uma influência das alterações de produção nas trocas observadas na escrita.
Sabemos que é muito frequente observarmos crianças que, embora apresentem uma fala sem alterações ou imprecisões apresentam trocas no plano da escrita, pelo que a fala não explica por si só os erros que encontramos.
Assim, surge a explicação que tem vido a ser altamente discutida na literatura, relacionada com o papel da consciência fonémica no processo de aprendizagem da leitura e da escrita, que pressupõe um pensamento explícito sobre unidades fonológicas (não fonéticas) e suas propriedades. “Ao aprender a escrever, a criança tem que se libertar do aspecto sensorial da linguagem e substituir as palavras por imagens de palavras.” (Vygtosky 1979. pp.131). A hipótese será a de que as crianças com alterações na escrita poderão ter maior dificuldade nesta competência explícita. Isto quer dizer que a criança, nas suas tentativas de análise segmental, poderá não conseguir aceder com precisão, clareza ou rapidez às propriedades que distinguem os fonemas.
Outro mecanismo que poderá estar envolvido nas dificuldades relacionadas com as trocas de letras que envolvem propriedades segmentais é a descodificação auditivo/fonológica. Para a aquisição das diferentes propriedades fonológicas precisamos de um sistema linguístico que é também alimentado pelas informações da língua que chegaram através de mecanismos auditivos e percetivos. Dificuldades na descodificação das pistas acústicas que envolvem o processamento das informações segmentais podem contribuir para imprecisões nas representações fonológicas que serão utilizadas para a fala e/ou para a escrita.
Algumas crianças apresentam dificuldade em reconhecer, detetar, ou discriminar segmentos, mostrando não ser sensíveis a determina propriedade. Estas dificuldades podem acontecer devido a processos fisiológicos (ex: otites médias), a processos cognitivos auditivos (processamento auditivo central) ou mesmo a processos de perceção fonético-fonológicos - que envolvem o recurso ao conhecimento fonológico previamente armazenado.
Assim, no processo de intervenção torna-se pertinente entender qual ou quais os mecanismos fonológicos que podem estar envolvidos nas trocas observadas, de forma a determinar os objetivos de intervenção e tarefas a selecionar. Uma criança que troca <v>/<f> poderá precisar de realizar mais tarefas de consciência fonémica. Outra que faz a mesma troca, poderia necessitar de mais tarefas de descodificação.
Alves (2012); Alves (2023); Alves & Carvoeiro (2019); Carvoeiro (2017); Carvoeiro (em prep.); Miranda (2020); Zorzi (1995), Ferreiro (1986), Gnerre & Cagliari (1985), Salgado (1992) e Da Silva (1991); Ramos (2022); Cagliari (1990)
Autoria do texto: Tânia Reis e Dina Caetano Alves